Goiânia, 19 de novembro de 2006

Gonzalo Armijos Palacios
gonzalo.armijos@gmail.com

Agostinho, o erro, o ser

Se enim fallor, sum. Pois não pode se enganar, quem não é. E quem tem medo de errar, nunca poderá ser

Não dediquei aos filósofos medievais o tempo que gostaria, e o que eles, certamente, merecem. Ainda continua sendo um projeto futuro — o de dedicar-lhes mais tempo, isto é. De outro lado, tampouco os negligenciei por completo. Eles foram bons companheiros de caminhada em alguns momentos da minha vida e volta e meia me ocupo de seus argumentos — com enorme prazer, devo reconhecer. Começou essa amizade nos tempos de graduação.

Tive aula de Filosofia Medieval com quem não era padre, não tinha sido, nem queria ser. Isso, quiçá, fez uma enorme diferença. Para melhor, penso. É o filósofo espanhol Lorenzo Peña Gonzalo, que não sei por que cargas d'água foi parar em Quito, por volta de 1974. Ativista político na Espanha, naquela época, e um ferrenho opositor do “Generalíssimo” ditador Francisco Franco — quem, graças a Deus, chegou a morrer, depois de uma longa agonia, no ano seguinte, aproximadamente um dia de suplício por cada ano que martirizou o povo espanhol: 36. Bom, eram umas aulas magníficas. Se mal não me lembro, focalizávamos mais os aspectos da filosofia da linguagem dos grandes pensadores medievais. Mas o Lorenzo Peña não deixou de mostrar outros aspectos fundamentais do pensamento medieval, como a profunda dívida que a filosofia ocidental tem com os filósofos árabes.

Santo Agostinho, poucos dias atrás lembramos mais um ano do seu nascimento — ocorrido em 13 de novembro de 354, ou seja, há 1652 anos. Muito tempo, poderiam pensar. Longe no tempo, mas muito próximo no pensamento e nas idéias. Com efeito, há um argumento que influenciou um dos pilares da filosofia moderna e contemporânea, Descartes. Que recebeu, também, a influência de um outro grande pensador medieval, Anselmo (1033-1109).

Entre outras — muitas e importantes — teses, é conhecida aquela afirmação de que, quando ninguém perguntava, ele sabia o que era o tempo, mas quando lhe perguntavam, aí já não sabia mais. O problema do tempo, em Agostinho, é uma das questões que exige uma concentração redobrada. É notável que 16 séculos depois de sua morte ele ainda seja lembrado por filósofos importantes por, precisamente, ainda estar presente em determinadas concepções filosóficas. Segundo Wittgenstein, a concepção da linguagem que está por trás do Tractatus, e de grande parte dos filósofos analíticos, é a tese de que a linguagem é fundamentalmente denotativa. De que praticamente todas as palavras da linguagem natural referem objetos. As Investigações Filosóficas, aliás, começam precisamente com um longo trecho de Agostinho.

Há consenso nos historiadores sobre a filosofia moderna começar com Descartes. O pensador francês é, realmente, um divisor de águas. E é apresentado como marcando o início do que seria um novo modo de se filosofar — no que, creio, não há nenhum exagero. E mesmo leigos devem ter ouvido a famosa fórmula: cogito, ergo sum — penso, logo existo. Nas Meditações, Descartes começa um raciocínio brilhante questionando o que ninguém comumente questionaria. Chega a duvidar de tudo, por precisamente não poder ter certeza de nada, para ver se sobre algo não poderia duvidar. E chega à conclusão de que justamente sobre o fato de estar duvidando não pode duvidar. E se está duvidando, naturalmente, existe. Pois se duvida, pensa, e, se pensa, existe. A grande primeira certeza no seu caminho para fundamentar todo o conhecimento humano.

Poucos, no entanto, sabem que esse argumento, contra o ceticismo, fora antecipado pelo Bispo de Hipona, como o filósofo, nascido em Tagaste, também é conhecido. Na Cidade de Deus (XI, 26), Agostinho tece alguns argumentos contra os filósofos acadêmicos que levantavam objeções céticas. Afirma o filósofo: “Com respeito a estas verdades, não temo os argumentos dos acadêmicos, que dizem: e que tal se estiveres enganado? Pois, se estou enganado, sou. Pois aquele que não é, não pode ser enganado, e se sou enganado, pela mesma razão, sou.”

Neste ambiente de temores e temerosos, é bom refletirmos sobre isto: só erra quem é, mas, por outro lado, quem tiver medo de errar, nunca vai ser.

GONÇALO ARMIJOS PALÁCIOS, filósofo e professor da Universidade Federal de Goiás, é articulista do Jornal Opção.


Tomado de: Jornal Opção, Jornal Diário da Manhã, O Popular, Grande Goiânia (Brasil)